Matadouro clandestino no município de Quixadá (foto: Alex Pimentel)
OPINIÃO
Em reportagem veiculada no último dia 10 de agosto de 2009 (que transcrevemos em nosso blog), o jornal Diário do Nordeste denuncia o quadro dramático em que funciona grande parte dos matadouros no Estado do Ceará. Diante da realidade que nos é colocada, como membro da APROV – Associação de Proteção à Vida, sinto-me compelida a fazer algumas reflexões.
A cadeia de carnes no Brasil registra números robostos e cifras bilionárias. Dados do IBGE revelam, considerando apenas o primeiro trimestre de 2009, que 6.446.000 cabeças de gado foram abatidas na pecuária brasileira (ANDA – Agência de Notícias de Direitos Animais) . Melhoramento genético, incorporação de novas práticas zootécnicas, tecnologias de transformação e beneficiamento são criadas e repensadas em nome de uma maior eficiência econômica. Eficiência econômica? Sim, estamos falando de um mercado, como qualquer um na economia atual, cujo objetivo maior é o ganho de competitividade, através da obtenção de um produto de melhor qualidade a menores custos. Os interesses? Atender, portanto, às necessidades de um mercado interno e externo em constante transformação (“Poxa, como a União Européia é exigente”!).
Mas por quê refletir sobre um mercado específico, que gera renda como tantos outros? Simplesmente porque a “mercadoria”, aquele “objeto”, que no mercado gera o lucro, são os animais. Portanto, há que se chamar atenção que aqui está sendo discutida a vida.
Os graves problemas de saúde pública, advindos de condições sanitárias degradantes, como as descritas na reportagem, contrastantes com a pecuária promissora brasileira, são notórios. O cenário de filme de terror descrito na matéria expõe uma situação que se repete em denúncias que envolvem a questão animal. Nós, humanos, que consumimos diariamente os produtos dessa indústria, podemos ser acometidos, tragicamente, por bactérias patogênicas ou doenças parasitárias. Assim, nossa tragédia vira “notícia” falada, escrita e filmada, como aquelas notícias de humanos que adquirem calazar ou raiva e aí são suscitadas campanhas, que muitas vezes depois são esquecidas.
O outro lado do mercado, ou dos problemas de saúde pública, que também se tornam problemas econômicos (porque nessa hora também viramos mercadoria, ou melhor, viramos estatística e números que pesam no orçamento público), é a violência e o desrespeito à vida que como locomotiva, move a indústria de carnes no mundo, no Brasil e aqui, bem perto de nós. A argumentação intelectual e científica já mostra que os animais não são feitos só de instintos, tendo, portanto, sentimentos, sabem o que é stress, angústia, medo (nem precisa comprovação da ciência, basta ter em casa um gato ou cãozinho). Os atos de violência descritos não são simplesmente atos cruéis, são crimes que violam a Constituição Federal (em seu Art 255/inciso VII), o Decreto Federal 24.645/1943 (Lei de proteção aos animais) e a lei Federal 9.605/1998 (Lei de crimes ambientais), nos quais maltratar animais é crime.
No momento em que a bioética é discutida em todo o planeta, torna-se objeto de estudos multidisciplinares, que envolvem medicina, direito, filosofia etc., em que o Brasil dá contribuições a fim de que se avance para além dos critérios biomédico e biotecnológico, envolvendo também os campos sanitário, social e ambiental, a sua tradução e materialização parece absolutamente utópica no ceará. Na verdade, pensar a vida e nela importar-se com a vida animal, tem que ser prática, realidade diária dos indivíduos e poder público; tem que estar na escola, nos currículos das Universidades e simplesmente, na nossa casa.
A matéria é importante não apenas porque denuncia irregularidades, mas por, de alguma maneira chamar atenção à vida e por dar espaço à opinião de uma especialista, valorosa protetora, integrante da União Internacional Protetora de Animais – UIPA.
Christiane Luci Bezerra Alves
(Professora do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri; Secretária e Integrante da APROV)
Diário do Nordeste - Regional - 10/08/2009
Relatório mostra grave quadro de matadouros do Estado
Quixadá O flagrante de um abatedouro funcionando em situação irregular na periferia de Quixadá traz à tona um grave problema de saúde pública. Além do sacrifício cruel dos animais, falta estrutura para o corte da carne que vai à mesa do consumidor. A maioria dos matadouros públicos do Interior do Estado do Ceará não possui higienização. Também faltam estrutura e equipamentos para a matança. Um levantamento disponibilizado pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) expõe o grave quadro dos matadouros.
O diagnóstico, elaborado pela RMS Engenharia foi solicitado em 2006 e atualizado por solicitação do Governo do Estado, por meio da Secretaria das Cidades. No relatório, o quadro é apontado como de caos. O processo de abate é realizado de forma desumana. O boi agoniza a marretadas. A esfola é realizada no chão, sem higiene adequada. O método também viola a lei estadual 12.505. O dispositivo legal estabelece o uso de pistola pneumática na matança. Não é o que ocorre na maioria dos abatedouros.
As irregularidades se estendem ao tratamento das águas residuais. Em 59% dos matadouros não existem dispositivos ou estações de tratamento. Outros 32% utilizam as próprias fossas como estrutura de despejo. A situação se agrava pela falta de controle sanitário eficiente. Também faltam instalações para acondicionamento da carne e derivados. Apenas 2% possuem licença ambiental. Em grande parte das cidades existe abate clandestino. Juntas, as anormalidades acarretam prejuízos para a saúde e meio ambiente.
Até o último levantamento, realizado em maio passado, o Ceará possuía 223 matadouros. Desse total, estão em atividade 159 públicos e 20 particulares. Outros 20 estão desativados e 23 em fase de implantação. A maioria dos matadouros ativos, 64%, abate animais tanto de grande como de pequeno porte. Em 53% deles há matança de bovinos, suínos e caprinos. Outros 11% abatem apenas bovinos e suínos. O abate somente de bovinos corresponde a 30%, enquanto apenas 6% não trabalham com a espécie. Esses dados serão utilizados na elaboração de um plano estratégico de implantação de matadouros regionais. No mês de setembro, um comitê intersetorial formado pelas Secretarias das Cidades, do Desenvolvimento Agrário, da Saúde e do Meio Ambiente deverá se reunir para planejar as ações, explicou o orientador da Célula de Resíduos Sólidos e Infraestrutura Sanitária da Secretaria das Cidades, Paulo César Alves.
De acordo com o especialista, o encontro norteará a viabilidade econômica das unidades de abate. O sistema de consórcio é apontado como alternativa.
Alves não definiu quando o Comitê fechará a questão. Ressaltou apenas o interesse do Governo do Estado em agilizar a instalação dos abatedouros regionalizados. O último governo a se interessar pelo problema foi o de Virgílio Távora, há mais de duas décadas. Segundo o técnico, na atual gestão, o Estado já disponibilizou R$ 2,9 milhões. Ele avalia a necessidade de garantias sólidas para que os investimentos se tornem auto-suficientes. A construção de uma unidade modelo de médio porte custa em média R$ 1 milhão.
Segundo o técnico do Núcleo de Vigilância Sanitária da Secretaria da Saúde do Estado, Norival Santos, várias são as doenças veiculadas por alimentos de origem animal. Dentre as de interesse sanitário, encontram-se as parasitárias: cisticercose, toxoplasmose, fasciolíase hepática; as de origem bacteriana como a salmonelose e brucelose e a de origem viral, febre aftosa. Todas estas enfermidades estão associadas a deficiências no controle sanitário dos animais destinados ao abate e na ineficácia dos sistemas de controle de qualidade durante o processamento das carnes.
Portanto, torna-se necessária a adoção de boas práticas em todas as etapas do processo visando garantir a produção de alimentos seguros, mantendo, assim, características nutricionais e qualidade sanitária. A qualidade do alimento produzido depende de fatores como condições da matéria-prima a ser beneficiada, estrutura oferecida para o processamento, conservação e acondicionamento para o produto acabado. A cadeia produtiva segue da produção primária até a distribuição do alimento oferecido.
Santos explica que a carne é um alimento altamente proteico e rico em vitaminas minerais. Apresenta características intrínsecas as quais contribuem para que os processos de deterioração sejam acelerados após as transformações bioquímicas ocasionadas após o abate. Para que isto não ocorra, é necessário que as boas práticas de manipulação e métodos de conservação sejam adotados para inibir a ação de microorganismos. Condições estruturais adequadas e controle de qualidade permanente podem reduzir os riscos para o consumidor.
Por meio da Coordenadoria de Promoção e Proteção a Saúde e do Núcleo de Vigilância Sanitária, a Sesa realizou um diagnóstico situacional das condições higiênico-sanitárias e ambientais de 164 matadouros sendo 150 públicos e 14 privados. Foram encontrados riscos desde a qualidade da matéria-prima até a comercialização .
QUIXADÁ
Novo local esbarra na burocracia
Quixadá Sobre a unidade de abate no município de Quixadá, o presidente da Empresa de Serviços e Negócios de Quixadá (Empresq), que gerencia o abatedouro, Helano Bezerra, explicou já haver um projeto para construção do novo prédio. A obra aguarda recursos da ordem de R$ 500 mil, todavia esclareceu o administrador depender do Governo Federal a liberação da verba.
De acordo com ele, o processo se arrasta pelos corredores de Brasília faz mais de dois anos. O município não possui recursos para arcar sozinho com as despesas. A contrapartida, de 20%, já está assegurada, completou.
Improvisado
Enquanto o novo prédio não chega, nos fins de semana, o mercado público e a maioria dos açougues dependem do matadouro improvisado nos fundos de uma mercearia, numa área residencial, para atender toda a freguesia.
A Vigilância Sanitária local reconhece que a área de abate é melhor estruturada que o abatedouro municipal. Mas, a vizinhança se sente incomodada com o trabalho. A situação foi denunciada à polícia e as irregularidades constatadas.
O proprietário, Eurismar Monteiro de Moura, alegou aos policiais que realiza o abate faz mais de uma década. Ele confirmou não possuir licença para funcionamento do matadouro. Moura também não possui veterinário para inspecionar os animais antes do abate. Mesmo assim, continua a prática.
Compete à Prefeitura de Quixadá a interdição do local, mas o comerciante atende os mesmos requisitos utilizados no matadouro da cidade. Até os esfoladores são os mesmos.
Fiscalização
Enquanto a Empresq tem dificuldades para implantar o abatedouro modelo, a Vigilância Sanitária do município tenta coibir a matança clandestina. A moita ainda continua sendo uma prática muito comum na cidade.
Neste ano, três locais que praticavam a atividade irregularmente, foram fechados. O diretor da Vigilância Sanitária municipal, médico veterinário Cláudio Medeiros, vê como saída para o problema a participação dos moradores, denunciado as irregularidades. Apenas a Fazenda Pé de Serra possui estrutura para o abate de animais de pequeno porte.
FASE EXPERIMENTAL
Pedra Branca é exceção no Sertão
Quixadá. Em julho de 2006, o Diário do Nordeste abordou o problema. Os matadouros públicos ainda continuam sendo de grande utilidade nos municípios do Interior. Mas as condições não têm avançado muito. Ainda são poucas as cidades a contarem com unidades onde as normas de abate são cumpridas. Pedra Branca, no Sertão Central, é uma das exceções. A estrutura passou a funcionar no início do mês passado. Com capacidade para abater 12 animais por hora, atende os critérios estabelecidos pelos órgãos oficiais de controle agropecuário e sanitário.
O secretário de Agricultura de Pedra Branca, Hélio Chaves Bastos, informou que os investimentos para implantação do abatedouro modelo foram da ordem de R$ 780 mil. Até sua conclusão, a obra se arrastou quase três anos. Houve necessidade de reelaboração do projeto. Hoje, o matadouro funciona em fase experimental. Aguarda a licença ambiental. Bastos disse que a luta não foi fácil. Ainda restam alguns ajustes.
Captação de recursos
Sobre a captação de recursos para o "abatedouro utópico", como definiu Hélio Bastos, o orientador da Secretaria das Cidades informou ser proveniente do Programa de Cooperação Federativa (PCF). Os deputados podem solicitar, todavia, ele vê a formação de consórcios públicos como a saída mais adequada. Há necessidade de autossustentabilidade dos serviços de abate. Não há como manter o funcionamento dos matadouros com recursos públicos. Os estudos sobre os custos ainda estão sendo realizados.
ALEX PIMENTEL
COLABORADOR
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Dor de animais pode prejudicar consumidores
Abatida sem as condições de higiene e inspeção sanitária, a carne de moita - prática muito utilizada em todo o Estado - além de infligir enorme sofrimento aos animais que são abatidos com marretadas, facadas e golpes de foice, provoca risco à saúde do consumidor. Nesses matadouros clandestinos - muitas vezes em fundos de quintal - não se sabe se antes de morrer o animal estava doente, além do que, com o sofrimento prolongado em virtude da morte lenta, a sangria torna-se mal feita porque o animal fica deitado e o sangue não consegue sair todo do corpo. Tal fato provoca a disseminação das toxinas do sangue na carne e, segundo profissionais da Medicina e Medicina Veterinária, a demora do sangue na carne facilita a contaminação bacteriana e a deterioração, possuindo acentuado índice de toxinas, substância essa liberadas pelo organismo do animal abatido por meio do método cruel. Trata-se do processo da glicose, transformação do glicogênio em ácido lático, que afeta a textura, o sabor e a conservação da carne. Tanto a carne proveniente de matadouros clandestinos quanto a abatida em matadouros públicos, não sendo utilizados os métodos adequados, traz grande prejuízo ao consumidor. Estudos desenvolvidos por cientistas e publicados na Revista da Sociedade Zoófila Educativa de São Paulo dão conta que o sofrimento e o medo da morte cruel a que são submetidos os animais provocam na carne a formações de toxinas que podem prejudicar o consumidor.
Geuza Leitão
geuzaleitao@bol.com.br
Advogada e presidente da Uipa
Mais informações
Secretaria Estadual das Cidades
(85) 3101.4448
Secretaria da Saúde do Ceará
(85) 3101.5123
Empresa de Serviços e Negócios de Quixadá (Empresq)
Sertão Central
(88) 3414.4700
Secretaria de Agricultura
Município de Pedra Branca
Sertão Central
(88) 3515.2426
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